Musicar um poema é um exercício menos complexo do que escrever a letra e a música de uma canção, pois no primeiro caso tem de se assumir o que as palavras nos querem transmitir, enquanto numa canção se tem de combinar a fonética, o ritmo, a métrica e a harmonia. A explicação foi avançada por Alex Cortez, músico e programador cultural, durante a tertúlia “A música das palavras”, que decorreu dia 21 de Outubro, no FOLIO.
“O poema tem necessidade de exprimir um estado emocional”, acrescentou José Anjos, músico e poeta. “Essa intenção já está lá. Dar-lhe voz é a forma de transmiti-lo ao Outro”, afirmou. Apesar de considerar que a poesia era um lugar do silêncio quando era mais nova, hoje Paula Cortes, poeta e psicóloga, acredita que “os poemas ganham vida com a música”. “A poesia pode sair do lugar mais silencioso e permitir um contágio quando dita com a música. A palavra pode ser enformada pela música.”
A prova disso, referiu Paula Cortes, é ler em silêncio o poema “O medo”, de Alexandre O´Neill, ou ouvir Miguel Borges a declamá-lo com a Lisbon Poetry Orchestra. José Anjos usou o exemplo de “O primeiro dia”, de Sérgio Godinho. “É um poema maravilhoso, mas há uma relação simbiótica com a música. Há um resultado semântico, no sentido em que a soma é melhor do que as partes. Se nunca tivesse ouvido, será que tinha o mesmo impacto? Não sei”, admitiu.
“Não há construção de uma ideia sem música. A construção de uma frase é indissociável da matéria musical. Temos uma língua comum em que podemos comunicar”, afirmou Filipe Homem Fonseca, escritor, músico e realizador. “O discurso coloquial é diferente da voz do narrador. Isso também se faz na escrita. A musicalidade está dentro do próprio discurso”, defendeu. “As palavras são mais um instrumento que está à disposição. Vejo a música como um elemento ilustrativo, acessório da palavra. Não sei quem é que veste quem, mas há uma forte relação entre a palavra e a música”, acrescentou Alex Cortez.
Festivais incentivam criatividade
“Podemos analisar poemas como analisamos a música. Quando escolhemos um poema e tentamos criar uma roupagem diferente com a música é a força das palavras que leva a esse ato criativo”, sublinhou Alex Cortez. “De repente, começou a disseminar-se. Estes festivais funcionam como forma de alimentar esse género. Este lado híbrido da música e da palavra, esta forma de fazer chegar às pessoas outro tipo de mensagem, de arte, de criar, o que me dá um gozo imenso.”
Alex Cortez considerou que “quando a música se relaciona com outras disciplinas, induz o ouvinte num imaginário próprio relativamente às palavras”. Para o ilustrar, referiu uma experiência com um quadro, exposto numa galeria com uma música de fundo muito triste, que levou as pessoas a associar a pintura a esse estado de alma. No dia seguinte, a música de fundo era alegre e as pessoas passaram a interpretar o quadro dessa forma.
No caso do fado, o desafio é diferente. “O Nuno escreveu letras para vários fadistas, inclusive para a Ana Moura”, explicou José Anjos. “Quando escreves para fado precisas de ouvir a música primeiro ou escreves a ouvir a voz da fadista?”, perguntou ao moderador. “Escrever para fado tradicional, em que a melodia é pré-definida, é relativamente pobre, mas como tem uma métrica impensável de ultrapassar, torna o desafio maior”, respondeu Nuno Miguel Guedes. “No fado, as palavras são entregues totalmente ao intérprete. Pegam na matéria-prima e devolvem-na à flor da pele.”