“A literatura e a arte dão-nos sentido no meio do caos”, afirmou, na noite de sábado, a escritora espanhola Irene Vallejo, durante uma conversa com o autor argentino Alberto Manguel, no âmbito do FÓLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos.
Apaixonada pela mitologia grega e romana, Irene Vallejo lembrou que a arte já existia na pré-história, muito antes de os Estados existirem, e sublinhou a “capacidade de redenção na Literatura e nas palavras”.
Diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, Alberto Manguel assumiu, por duas vezes, o papel de entrevistador da sua discípula, e perguntou-lhe porque se devem ler os clássicos na atualidade.
“Os clássicos são capazes de condensar as nossas emoções, angústias, medos, dores, renúncias, desesperanças, contradições, e fazem-no de uma maneira que parece devolver ordem ao caos”, respondeu Irene Vallejo.
Autora de “O Infinito num Junco – A invenção do livro na antiguidade e o nascer da sede da leitura”, que ganhou o Prémio Nacional da Literatura 2020, em Espanha, na categoria de ensaio, explicou que “os clássicos de todas as épocas explicam e revelam”, permitindo expandir a nossa visão.
“A literatura põem-nos em contacto com a humanidade mais ampla a que pertencemos. Os clássicos fazem-no de uma maneira muito profunda”, acrescentou Irene Vallejo. “Foram tão amados ao longo dos tempos, que não conseguimos imaginar o mundo sem eles. Têm um eco duradouro e permanente.”
A escritora espanhola ressalvou, contudo, não se estar a referir às obras lidas por obrigação ou por insistência. A este propósito, Alberto Manguel disse mesmo que não se consegue impor a ninguém ser leitor. “Produzir um leitor é como enamorarmo-nos pela primeira vez. Lermos e apaixonarmo-nos não podem ser obrigados.”
Ao contrário de Irene Vallejo, que se referiu à leitura como um “ato igualitário”, o escritor argentino disse não partilhar dessa ideia. “Há poucos cidadãos que têm a possibilidade de aceder à leitura e a bibliotecas gratuitas, porque primeiro pensam em comer, abrigar-se, e na sua saúde”, alertou.
“Enquanto os governos não solucionarem esses problemas, ninguém vai entrar numa biblioteca se tiver fome, se não tiver casa ou se não tiver saúde”, justificou Alberto Manguel. “Mas isso não significa que não devamos ter bibliotecas e apresentar livros, na esperança de que uma em mil pessoas descubra a sua biografia.”
A título de exemplo, o diretor da Biblioteca Nacional da Argentina contou que, na Colômbia, um leitor não devolveu à biblioteca a obra “Ilíada”, escrita por Homero, no século IX a.C., porque entendeu que contava a sua história, o que o escritor considerou revelador da “força de um livro escrito há milénios”.
“Quero acreditar que alguém que lê tem a oportunidade de ser melhor, e de criar uma conexão mais profunda com o que a rodeia. Mais compassiva, mais consciente”, disse Irene Vallejo. Alertou, porém, que “há pessoas que leem muito e se tornam ditadoras”, ao aprender sobre psicologia e sobre terror.
Sobreviventes históricos
Confrontada pelo moderador, António Costa Santos, com um cenário catastrofista, em que o livro desaparece e é substituído por ecrãs, a escritora espanhola defendeu que “os livros são grandes sobreviventes históricos, e que é quase impossível imaginar o mundo sem eles”.
“Há uma tendência apocalíptica. Por isso, quando se inventou a fotografia achava-se que a pintura ia acabar”, recordou Irene Vallejo. “A verdade é que os livros permanecem muito tempo, enquanto os produtos tecnológicos estão pensados para durar pouco, para comprarmos outros”, explicou.
“Temos livros com 2000 anos, que não morreram. São um objeto perfeito, criado para desafiar o tempo, e derrotar a destruição. As histórias que nos contam serão importantes dentro de muitos anos”, assegurou a autora de “O infinito num junco”. “Produzem-se mais livros do que em nenhuma outra época da história.”
Alberto Manguel concordou que se publicam muitos livros na atualidade. Defensor da ideia de que a leitura é essencial, distinguiu, contudo, quem lê livros de quem lê nas redes sociais, ao considerar que estes têm um nível de conhecimento muito inferior.
Em resposta à pergunta de um leitor sobre o processo da escrita, Irene Vallejo confirmou a dificuldade em terminar um livro. “Não o queria acabar. Continuava a escrever, e os meus editores obrigaram-me a cortar 150 páginas. Queria viver dentro desse livro, sem ter de renunciar ao sonho de me dedicar à leitura.” “Mas há um momento em que decides desprender o livro de ti, mesmo não crendo que esteja terminado. No final, há que abandoná-lo, e deixar as suas imperfeições”, defendeu.
“Os livros continuam noutros livros. Mudas de ideias e transformas-te”, garantiu. “Escrever e ler são atos solitários, mas são coletivos porque nos mostram o mundo. São histórias de amor e de lealdade.”